PRIMEIRO
CONTO DOS CORAÇÕES ÉBRIOS
Marlua
Ele
era esguio. Esguio e magro. Ele era esguio e magro e de porte médio.
Tinha
a cara daqueles meninos que riem da vida numa esquina com os amigos, olhando os
taxis passarem, tomando uma cerveja no meio da rua. Olhando outros meninos como
se olhasse a fome. Olhando meninas como se olhasse meninos.
Eram
três ébrios na noite. Ele, esguio, magro e de porte médio; sua embriaguez
contumaz e sua fome. Os três trocavam pequenas falas, pequenas discursões sobre
o tempo de seca de sentimentos, a falta de alimento para a alma, e de como a
cerveja era gelada. Todas conversas de balcão tidas numa esquina de bar.
Postura curvada e mãos nos bolsos evitando olhar para os olhos de qualquer um
dos amigos de esquina. Evitando olhar para aquele espelho que são os olhos dos
que nos amam, dos que nos conhecem.
Ainda
conversando sobre nada com um certo ninguém, caminhou um sexto de légua
buscando espelhos sujos e opacos. Caminhou um sexto de légua pra achar dores
que já lhe faltavam há um tempo, já que distraído jogou todas elas no fundo do
copo de cerveja como quem dá um boa noite cinderela a uma mulher desejada.
‘Caminhando
e cantando e seguindo a canção’. Ele na noite, semi ébrio, se é que existe alguém que fique assim, pois essa fase
de semi embriaguez é a menos notada. Ele
fica. Ele não é como os outros, pois ele carrega consigo dores e amores
incompreendidos e não correspondidos, não necessariamente nessa ordem. Ele
carrega fardos que não são dele, fardos de algodão, imensos, por isso tão
pesados, e mesmo assim ele os carrega. Há em seu olhar qualquer coisa de tudo,
e na vida qualquer coisa de coisa nenhuma.
Ele
cambaleante e cantante como tem que ser um ébrio na noite. Com o coração
pulsante fazendo serenatas ao asfalto quente e à noite fria. Ele segue em
direção ao Fim da Noite. Este era o nome do baile de máscaras ao qual chegara,
o cambaleante amante. Cigarros, álcool, amores roubados, cigarros, cigarros,
cigarros, álcool, amigos falsos, cigarros, música, cigarros, suco e vodka, cigarro,
vodka, vodka, suco e vodka, cigarros, vinho, vinho, cigarros, suco e vodka,
vinho, vodka, cigarros...
Bebeu
o mundo inteiro para preencher o vazio. Bebeu o mundo inteiro para transbordar
de nada. Bebeu o mundo inteiro. Voltou, o cambaleante amante na noite fria
andando pelo asfalto quente que a essa hora já haviam transado e dado parição a
ventos frescos. Choroso amante das coisas impossíveis de voltar, lúcido
embriagado amante dos amores que perdeu. Cigarros, cigarros, cigarros...
O
banheiro, o chuveiro, o quarto. O banheiro, o bidê, o vômito, o vômito, o
vômito, o quarto. O quintal, o vômito, o banheiro, o vômito, o chão frio, o
vômito. A música de bidê. O quarto, o sono, o vômito, o choro, o vômito, o
vômito, o edredom e o vômito sua cama de aninhar-se. O sol. Ele agora da cor do
sol, amarelo. Ele, esguio, magro e de porte fetal na sua cama de aninhar. O
edredom o envolvendo como uma placenta, o vômito o alimentando como líquido
amniótico. Ele, feto, recém gerado nesse mundo canibal. Ele recém gerado de
sentimentos infinitos. Ele recém gerado.
Vale
ser sabido que houvera nessa noite mais dois personagens, dois grilos falantes,
dois amigos de esquina. Mas ele, magro, esguio, de porte de todos os
sentimentos do mundo foi quem vomitou a imundície pela qual passara. Foi ele
quem vomitou o mundo qual bebera. Foi ele quem viveu na noite em que seu
coração morrera. Foi ele, esguio, magro, de porte médio que dormiu adulto e amanheceu
feto...