terça-feira, 14 de outubro de 2014

Do Conto IV

TERCEIRO CONTO DOS CORAÇÕES ÉBRIOS
por Marlua

Na alta noite que já se ia, entre a felicidade geral da nação e as mesas lotadas a loba uivava. A presa seguia seu canto como marinheiro segue a mãe d’água. A revolta, a revoada de andorinhas no peito. A meia vista encontrando grandes olhos de gude. Aqueles olhos eternizados por Assis. Dissimulação. Obliquidade.
Um bordel saía dos lábios daquela fêmea etérea. A cigana dançando nas pálpebras fingidas, desejada como caneca de vinho. As juras de amor repetidas e sem credibilidade. Os festejos, as caravanas e a música, tudo traduzido em meio a corpos presentes e desimportantes. Toda uma noite de sexo telepático, todo um show pré-acasalamento.
O canto cessa. Ovações, abraços gratuitos e a fêmea no cio olhando sua presa. O caminho lerdo e os olhares. Os corpos desimportantes, obstáculos. Passos mais largos, a porta, a noite, a presa, a pressa. A jugular pulsando exposta ao frio da noite. Lua cheia.
As células como imã atraindo cada pedaço. As mãos atraídas para os ombros, os seios para o tronco, o sexo para o sexo ainda que sob as roupas. As bocas para as bocas e suas línguas. A deixa, e deixa-se estar. A toca solicitada para o coito cedido. Os corações frívolos, todos eles espalhados pelo mundo pulsando fortes querendo voltar ao peito.

A negação, a aceitação. A ida falsa e a volta gratuita. A nova ida. A velha novidade. O coito interrompido. 

Do Conto III

SEGUNDO CONTO DOS CORAÇÕES ÉBRIOS
por Marlua

A boca da noite na boca da onça. A boca escancarada e cheia de dentes esperando os amores chegarem. O pedido de paz e de novo caminho. A boca rota pela areia branca no gargalo das garrafas vazias.
Era ela. Sequelas de amores vãos. Sequelas de carinhos esguichados como garrafas de champanhe. Olhares como taças em cascata na noite de ano bom. As mãos entrelaçadas nas mãos secas que não eram suas. As gargalhadas mais escandalosas que as coxas desnudas. Amizades pernetas, brisa fria, brisando fraco. ‘Chuá... Chuá...’. Sete ondas vadias lambendo suas pernas esguias, molhando suas coxas e seu ventre feito casal apaixonado em lua de mel. O segundo pedido.
A bexiga cheia, a cabeça tonta, a andança. Corpos felizes e copos vazios. De todas as frutas tropicais e suculentas, era ela quem soltava o sumo. A fruta polpuda, macia, pronta para qualquer sorte. Ao lado a faca afiada, fina, comprida, gelada, pronta para o corte. Na estrada ereta a passos largos a onça ébria e sedenta. A seu lado a presa fácil, lerda e não menos bêbada.
A anágua feito flor, orquídea rubra e alva sendo exposta pela pélvis encharcada de sangue. Se não fossem duas elas, duas fêmeas, duas vulvas, talvez o abrigo e o banho lhe fosse negado. A água quente alvejando a flor desabrochada, amolecendo o talo daquela que foi fruto antes de ser flor. Borrando o rímel negro e a boca carmim.
Filmado pelas mãos trêmulas entre a genitália e pelos olhos negros de pé na porta, selou-se o aborto. Amor abortado no litoral, cozido na água quente, ao ponto, como se faz galinha ao molho pardo. Aborto de ano ou mais.

É réveillon. Viva o ano bom!

Do Conto II

PRIMEIRO CONTO DOS CORAÇÕES ÉBRIOS
Marlua

Ele era esguio. Esguio e magro. Ele era esguio e magro e de porte médio.
Tinha a cara daqueles meninos que riem da vida numa esquina com os amigos, olhando os taxis passarem, tomando uma cerveja no meio da rua. Olhando outros meninos como se olhasse a fome. Olhando meninas como se olhasse meninos.
Eram três ébrios na noite. Ele, esguio, magro e de porte médio; sua embriaguez contumaz e sua fome. Os três trocavam pequenas falas, pequenas discursões sobre o tempo de seca de sentimentos, a falta de alimento para a alma, e de como a cerveja era gelada. Todas conversas de balcão tidas numa esquina de bar. Postura curvada e mãos nos bolsos evitando olhar para os olhos de qualquer um dos amigos de esquina. Evitando olhar para aquele espelho que são os olhos dos que nos amam, dos que nos conhecem.
Ainda conversando sobre nada com um certo ninguém, caminhou um sexto de légua buscando espelhos sujos e opacos. Caminhou um sexto de légua pra achar dores que já lhe faltavam há um tempo, já que distraído jogou todas elas no fundo do copo de cerveja como quem dá um boa noite cinderela a uma mulher desejada.
‘Caminhando e cantando e seguindo a canção’. Ele na noite, semi ébrio, se é que existe alguém que fique assim, pois essa fase de semi embriaguez é a menos notada. Ele fica. Ele não é como os outros, pois ele carrega consigo dores e amores incompreendidos e não correspondidos, não necessariamente nessa ordem. Ele carrega fardos que não são dele, fardos de algodão, imensos, por isso tão pesados, e mesmo assim ele os carrega. Há em seu olhar qualquer coisa de tudo, e na vida qualquer coisa de coisa nenhuma.
Ele cambaleante e cantante como tem que ser um ébrio na noite. Com o coração pulsante fazendo serenatas ao asfalto quente e à noite fria. Ele segue em direção ao Fim da Noite. Este era o nome do baile de máscaras ao qual chegara, o cambaleante amante. Cigarros, álcool, amores roubados, cigarros, cigarros, cigarros, álcool, amigos falsos, cigarros, música, cigarros, suco e vodka, cigarro, vodka, vodka, suco e vodka, cigarros, vinho, vinho, cigarros, suco e vodka, vinho, vodka, cigarros...
Bebeu o mundo inteiro para preencher o vazio. Bebeu o mundo inteiro para transbordar de nada. Bebeu o mundo inteiro. Voltou, o cambaleante amante na noite fria andando pelo asfalto quente que a essa hora já haviam transado e dado parição a ventos frescos. Choroso amante das coisas impossíveis de voltar, lúcido embriagado amante dos amores que perdeu. Cigarros, cigarros, cigarros...
O banheiro, o chuveiro, o quarto. O banheiro, o bidê, o vômito, o vômito, o vômito, o quarto. O quintal, o vômito, o banheiro, o vômito, o chão frio, o vômito. A música de bidê. O quarto, o sono, o vômito, o choro, o vômito, o vômito, o edredom e o vômito sua cama de aninhar-se. O sol. Ele agora da cor do sol, amarelo. Ele, esguio, magro e de porte fetal na sua cama de aninhar. O edredom o envolvendo como uma placenta, o vômito o alimentando como líquido amniótico. Ele, feto, recém gerado nesse mundo canibal. Ele recém gerado de sentimentos infinitos. Ele recém gerado.

Vale ser sabido que houvera nessa noite mais dois personagens, dois grilos falantes, dois amigos de esquina. Mas ele, magro, esguio, de porte de todos os sentimentos do mundo foi quem vomitou a imundície pela qual passara. Foi ele quem vomitou o mundo qual bebera. Foi ele quem viveu na noite em que seu coração morrera. Foi ele, esguio, magro, de porte médio que dormiu adulto e amanheceu feto...